Escrito por: Kleber Henrique
Resgatar um pouco da história de alguém ou mesmo de acontecimentos de uma época é algo sempre incompleto, pois, jamais se conseguirá reunir completamente as peças que formarão uma visão total; consegue-se apenas juntar pedaços significados e reveladores. Falar de alguém e de sua vida é ainda mais difícil, pois a essência maior de cada ser é singular e ímpar. Nas linhas a seguir falaremos de uma poetisa da terra que em vida deixou um grande acervo de sua obra, pois a poesia era sua parceira maior nos registros do que vivia. Poderíamos intitular a página: “SIMPLESMENTE MARIA”, mas decidimos nomeá-la com o nome dado pelo povo,pois acredito que a mesma acharia melhor esse titulo o qual vem abaixo e os leitores logo saberão o porquê.
Maria das Mercês de Andrade Campos, nasceu em 24 de junho de 1923, no pequeno sobrado de nº. 19 da rua Coronel Henrique em São Vicente Férrer onde foi viveu a vida inteira.
Filha de Manoel Gomes de Andrade, homem branco de olhos azuis, conhecido como Sr. Mané Tomé ou Sr. Né, que era sapateiro e nas horas vagas gostava de fumar e dedilhar seu violão, e dona Gina Gomes de Andrade, que era cabocla com feições índias, dona de casa e tinha uma historia de vida interessante. Em passagem como retirantes para a Paraíba Gina adoeceu, seus pais a deixaram aos cuidados de um casal e nunca mais voltaram para buscá-la. O nome Gina foi inventado pra ela. A criança cresceu e era muito mal tratada pela família que a criou, até que Sr. Né ao vê-la, ainda menina com as mãos queimadas por ferro, com compaixão a pediu em casamento ainda menina e lhe deu esse nome, daí nasceu o amor deles e nasceram filhos, entre eles Maria das mercês ou SIMPLESMENTE MARIA.
Maria era uma menina religiosa e desde pequena, mostrava-se sensível às artes, participando de pastoris e pequenos dramas de teatro infantil e cantava bem acompanhada pelo violão de Sr. Né, seu pai. Quando aprendeu a escrever com dona Filomena (a única professora da vila Manoel Borba), que ensinava o bê-á-bá entre muito autoritarismo e tragos de cachaça, Maria começou a escrever versos em estilo de trovas.
Aos 15 anos, numa quinta-feira santa, (06 de abril de 1938) como a mesma registrou, conheceu o grande amor de sua vida Pio Ferreira Campos, homem franzino, negro, pobre e músico da banda local. Apaixonaram-se mutuamente e sofreram juntos a repressão de Sr. Né que era extremamente racista. Pio, decepcionado, entrega-se a boemia o que agrava ainda mais a situação do casal, como ele deixa bem claro num poema que escreveu para Maria intitulado “O que sou” eis um trecho:
“Sou a tristeza de uma despedida
Sou lágrima doida que no chão rolou
Sou a ave errante que não tem guarida
Sou o passado que o tempo tragou”.
E ainda em carta à sua amada em 1949, escreve:
“Maria nome sublime e elevado
Como te exaltas na imensidão dos astros
Nos meus olhos sempre nevoados
Brilhas e iluminas meus pobres passos”.
Passados 14 anos de sofrimento dos dois, sr. Né muda de idéia, depois que Maria é acometida de febre tifo e quando em pré-coma chama pelo nome de Pio. Sr. Né faz promessa e quando Maria se recuperou da doença, seu casamento foi permitido.
Casaram-se em 27 de setembro de 1952 e passam a morar numa modesta casa. Maria passou a exercer a profissão de professora primária e o esposo trabalhava como escrivão da polícia. Dessa união, nasceram 4 filhos: Teresa (que morreu logo ao nascer), José Petrônio, Maria das Graças e Miriam.
A vida conjugal do casal era bastante simples e modesta, mas cheia de muito amor mútuo. A coleção de versos de Maria deixa claro que durante toda a união o casal nunca se desentendeu.
A partir de 1964, começam alguns tormentos quando sr. Pio acometido por fortes crises de asmas. O que vai ser causa de sua morte em 03 de outubro de 1971 nos braços da esposa, quando na sacada de sua casa buscava desesperadamente o ar.
Após a morte de Pio, a obra poética de Maria em grande parte se dedica a tratar sobre a dor da perda, como nos versos:
“Oh! Pio quem me dera
Que nesse mesmo momento
De dor e de treva
A minh’alma unisse a tua
E fossemos para a solidão da terra
E que em nossa sepultura
Fosse escrito os dizeres de nossa sorte
Pio e Maria unidos
Na vida e na morte”.
E começa a travar uma luta: criar e principalmente educar os filhos, sozinha. Porém não mediu distâncias, chegando mesmo a escrever em meados da década de 70 (ditadura militar) ao então presidente da república Emílio Garrastazu Médici, pedindo bolsas de estudo para custear o curso de segundo grau dos filhos, visto que na época o mesmo era particular.
Em sua obra encontram-se poemas belíssimos referente a sua terra natal, os festejos do rosário, os costumes e tradições de sua época. Como no poema “A Menina do Sobrado” que deixa bem claro o retrato de sua infância e é para quem o ler uma volta à São Vicente Férrer da década de 30.
Em 20 de novembro de 1997, escreve o último poema “Tacianinho”, dedicando ao seu bisneto. Um ano depois, Dona Maria nos deixa.
Até hoje, suas filhas conservam com muito zelo toda a sua obra: versos, poesias, cartas, diários, o vestido de noiva e outros trabalhos manuais, prova de sua habilidade com o bordado.
É uma pena essa obra não ser editada e servir para consulta pública, reduzindo o acesso apenas a quem mantém certa proximidade com a família. Isso serve de apelo aos órgãos responsáveis pela educação e cultura de nosso município, que voltem os olhares não só para a obra de dona Maria, mas também, para outros conterrâneos que contribuíram com a produção artística e literária.
Terminamos com um trecho de um dos seus muitos poemas dedicados a São Vicente Férrer:
“Como não amar-te São Vicente
Não carregar-te em meu coração
Tu que és o horizonte da minha vida
O sustentáculo de quem nasce nesse torrão
Que todo filho dessa terra
Saiba valorizar-te
E nas tuas sombras mais tarde
Possa como eu testemunhar sua saudade”.
(Agradecemos as nossas amigas Graça Campos e Miriam Campos que carinhosamente nos disponibilizaram o acesso ao vasto tesouro da obra de seus pais).
Foto: 1955 (a esquerda para direita: Pio Ferreira, Petrônio, Maria das Mercês)
Cuca Livre
Filha de Manoel Gomes de Andrade, homem branco de olhos azuis, conhecido como Sr. Mané Tomé ou Sr. Né, que era sapateiro e nas horas vagas gostava de fumar e dedilhar seu violão, e dona Gina Gomes de Andrade, que era cabocla com feições índias, dona de casa e tinha uma historia de vida interessante. Em passagem como retirantes para a Paraíba Gina adoeceu, seus pais a deixaram aos cuidados de um casal e nunca mais voltaram para buscá-la. O nome Gina foi inventado pra ela. A criança cresceu e era muito mal tratada pela família que a criou, até que Sr. Né ao vê-la, ainda menina com as mãos queimadas por ferro, com compaixão a pediu em casamento ainda menina e lhe deu esse nome, daí nasceu o amor deles e nasceram filhos, entre eles Maria das mercês ou SIMPLESMENTE MARIA.
Maria era uma menina religiosa e desde pequena, mostrava-se sensível às artes, participando de pastoris e pequenos dramas de teatro infantil e cantava bem acompanhada pelo violão de Sr. Né, seu pai. Quando aprendeu a escrever com dona Filomena (a única professora da vila Manoel Borba), que ensinava o bê-á-bá entre muito autoritarismo e tragos de cachaça, Maria começou a escrever versos em estilo de trovas.
Aos 15 anos, numa quinta-feira santa, (06 de abril de 1938) como a mesma registrou, conheceu o grande amor de sua vida Pio Ferreira Campos, homem franzino, negro, pobre e músico da banda local. Apaixonaram-se mutuamente e sofreram juntos a repressão de Sr. Né que era extremamente racista. Pio, decepcionado, entrega-se a boemia o que agrava ainda mais a situação do casal, como ele deixa bem claro num poema que escreveu para Maria intitulado “O que sou” eis um trecho:
“Sou a tristeza de uma despedida
Sou lágrima doida que no chão rolou
Sou a ave errante que não tem guarida
Sou o passado que o tempo tragou”.
E ainda em carta à sua amada em 1949, escreve:
“Maria nome sublime e elevado
Como te exaltas na imensidão dos astros
Nos meus olhos sempre nevoados
Brilhas e iluminas meus pobres passos”.
Passados 14 anos de sofrimento dos dois, sr. Né muda de idéia, depois que Maria é acometida de febre tifo e quando em pré-coma chama pelo nome de Pio. Sr. Né faz promessa e quando Maria se recuperou da doença, seu casamento foi permitido.
Casaram-se em 27 de setembro de 1952 e passam a morar numa modesta casa. Maria passou a exercer a profissão de professora primária e o esposo trabalhava como escrivão da polícia. Dessa união, nasceram 4 filhos: Teresa (que morreu logo ao nascer), José Petrônio, Maria das Graças e Miriam.
A vida conjugal do casal era bastante simples e modesta, mas cheia de muito amor mútuo. A coleção de versos de Maria deixa claro que durante toda a união o casal nunca se desentendeu.
A partir de 1964, começam alguns tormentos quando sr. Pio acometido por fortes crises de asmas. O que vai ser causa de sua morte em 03 de outubro de 1971 nos braços da esposa, quando na sacada de sua casa buscava desesperadamente o ar.
Após a morte de Pio, a obra poética de Maria em grande parte se dedica a tratar sobre a dor da perda, como nos versos:
“Oh! Pio quem me dera
Que nesse mesmo momento
De dor e de treva
A minh’alma unisse a tua
E fossemos para a solidão da terra
E que em nossa sepultura
Fosse escrito os dizeres de nossa sorte
Pio e Maria unidos
Na vida e na morte”.
E começa a travar uma luta: criar e principalmente educar os filhos, sozinha. Porém não mediu distâncias, chegando mesmo a escrever em meados da década de 70 (ditadura militar) ao então presidente da república Emílio Garrastazu Médici, pedindo bolsas de estudo para custear o curso de segundo grau dos filhos, visto que na época o mesmo era particular.
Em sua obra encontram-se poemas belíssimos referente a sua terra natal, os festejos do rosário, os costumes e tradições de sua época. Como no poema “A Menina do Sobrado” que deixa bem claro o retrato de sua infância e é para quem o ler uma volta à São Vicente Férrer da década de 30.
Em 20 de novembro de 1997, escreve o último poema “Tacianinho”, dedicando ao seu bisneto. Um ano depois, Dona Maria nos deixa.
Até hoje, suas filhas conservam com muito zelo toda a sua obra: versos, poesias, cartas, diários, o vestido de noiva e outros trabalhos manuais, prova de sua habilidade com o bordado.
É uma pena essa obra não ser editada e servir para consulta pública, reduzindo o acesso apenas a quem mantém certa proximidade com a família. Isso serve de apelo aos órgãos responsáveis pela educação e cultura de nosso município, que voltem os olhares não só para a obra de dona Maria, mas também, para outros conterrâneos que contribuíram com a produção artística e literária.
Terminamos com um trecho de um dos seus muitos poemas dedicados a São Vicente Férrer:
“Como não amar-te São Vicente
Não carregar-te em meu coração
Tu que és o horizonte da minha vida
O sustentáculo de quem nasce nesse torrão
Que todo filho dessa terra
Saiba valorizar-te
E nas tuas sombras mais tarde
Possa como eu testemunhar sua saudade”.
(Agradecemos as nossas amigas Graça Campos e Miriam Campos que carinhosamente nos disponibilizaram o acesso ao vasto tesouro da obra de seus pais).
Foto: 1955 (a esquerda para direita: Pio Ferreira, Petrônio, Maria das Mercês)
Cuca Livre
Estou eu a pesquisar conteúdo sobre consciência negra e deparo-me com uma história real, emocionante que aconteceu em São Vicente Ferrer. Amor, arte, história de vida e de luta pela superação de preconceito. Parabéns Kleber Henrique por esse maravilhoso trabalho.
ResponderExcluir